EU NÃO SOU VOCÊ!
37
anos 5 meses e 3 dias
O que
há em comum entre o dia 6 de maio de 1955 e 01 de novembro de 1983 com 09 de
outubro de 1992 e 04 de abril de 2021?
37
anos 5 meses e 3 dias, ou seja, o mesmo período de tempo neste lugar que
chamamos de terra.
Durante
anos, talvez durante todos estes anos a imagem que o filho tivera do pai era de
um herói.
Um
herói que sucumbiu diante de 4 balas letais.
O
filho nasceu, cresceu e viveu por anos com essa imagem do pai incontestável,
inquestionável, quase gloriosa e redentora de um grande amigo, protetor,
brincalhão, leal e amoroso, a criança fora induzida a pensar assim sobre este
pai que o reprimiu e o agrediu durante aquele tempo na infância.
Os
relatos da mãe do único irmão paterno, o caçula, que muito lembra - uma versão boa deste pai - o pai ao
menos fisicamente, com o relato profundo e arrebatador da mãe, somados a tudo o
que viveu, presenciou e se têm vivo na memória sobre sua infância com este pai
só o leva à uma direção.
Tal
pai era um monstro que o fez muito mal, que o assombrava até então, reprimia a sua
fala, as suas lágrimas, alguém que roubou muitas possibilidades daquela criança
que assumiu responsabilidades que não a cabia, tal pai deixou a criança aleijada
mesmo ela tendo pernas, surda mesmo podendo ouvir, cega mesmo com os olhos em
perfeito estado, durante anos de sua vida se viu atrofiado, frustrado, culpado
por um monte de coisas, incluindo a morte de seu pai que foi de inteira
responsabilidade daquele pai violento e de quem o assassinou. Foi necessário
viver algumas cenas que por alguns instantes o levou a achar que era tão ruim e
cruel quanto este pai, como magoar pessoas, ferir outras, machucar, afastar e
perder as pessoas que mais amava para entender que este pai nunca foi seu
herói, e sim o maior vilão da sua história.
Sim,
era até hoje difícil para ele admitir que seu pai foi um monstro, e não um
herói. Um menino naturalmente por mais amor que tenha a figura materna sempre
tem a figura masculina do pai como uma inspiração, como uma grande referência.
Este pai que o fez mal e ainda faz mal mesmo depois de partir, mesmo depois de
pagar o preço mais caro que alguém possa pagar que é com a própria vida.
Foi
numa sexta-feira por volta das 22h30 no bairro Recanto do Sol em uma cidade
qualquer em um estado do centro oeste brasileiro em um bar cujo o nome o filho não
se lembra no dia 9 de outubro de 1992 que aos 37 anos 5 meses e 3 dias de vida aquele
pai se foi ao menos fisicamente, ainda que durante todos estes anos seu
fantasma tenha voltado para assombrar este filho, o seu primogênito.
Um pai
devia proteger, cuidar, respeitar, dar carinho, ser provedor, brincar e ser
amoroso como seu filho, nunca cruel. Nenhuma criança merece sofrer, nenhuma
criança deve passar pela humilhação de ser agredida seja física, verbal,
emocional ou outra forma qualquer, nenhuma!
Finalmente
pai e filho tem o mesmo tempo de existência na terra, o mesmo tempo de chão da
vida percorrido, o pai sabe os pontos fracos do filho, e o filho sabe quais são
as fraquezas do pai, com um grande detalhe, o filho já não é mais a criança no
ventre da mãe violentada que passou a noite internada por quase perder o bebê
após ser espancada por este pai que estava traindo essa mãe. O que “motivou”
tal agressão? A mãe se recusara continuar trabalhando sozinha tarde da noite
enquanto o pai se divertia com sua amante. O garoto cresceu, não é mais a
criança assustada e com medo que tinha seu choro silenciado e sua fala
reprimida, agora o filho também é um adulto que pode olhar o pai nos olhos com
a mesma envergadura e dizer: EU NÃO SOU VOCÊ! NÃO QUERO REPETIR SEUS ERROS!
QUERO CONSTRUIR A MINHA PRÓPRIA HISTÓRIA BEM DIFERENTE DA SUA, E ESTOU FAZENDO
ISSO!
Sim, este
pai era um monstro, cruel, desleal nos relacionamentos, um homem dependente do
álcool, viciado em sexo, e extremamente violento, não foram poucas as vezes que
o filho presenciou o pai bater em sua companheira que nem era a sua mãe (filho),
nem a do irmão, já era uma terceira companheira, mulher gentil, amável dos
cabelos cacheados que cuidou dessa criança como se fora seu filho, fez mais
pela criança que o próprio pai que se limita a pagar as contas e fazer a feira.
Este pai por diversas vezes chegava bêbado e batia naquela mulher até ela
sangrar e chorar, em certa ocasião ele bateu tanto que ela quase desmaiou,
depois cheio de remorso e culpa esse pai chamou o filho assustado com aquela
cena e perguntou a criança: “O que devo fazer? ” - A criança respondeu: “Você
deve pedir perdão para ela, homem que é homem não bate em mulher”. Não se sabe
onde aquela criança ouvira aquilo, mas fato é que os papéis eram nitidamente
invertidos. Quantas vezes essa criança presenciou este pai abusando sexualmente
dessa companheira? Quantas agressões físicas? E brigas em bares com
desconhecidos? O quão angustiante era para essa criança olhar para um pai,
esperar algo e receber o oposto?! E a mãe dessa criança onde estaria? Porque não
fora atrás dele? Medo deste pai? Medo de que este pai pudesse fazer algo contra
a vida dela? Este pai era uma mistura de Lameque com Manassés (personagens
bíblicos cruéis). Uma mistura de violência com perversidade!
Nos
relatos das duas mães dois pontos positivos em comum sobre este pai, ele era
trabalhador e consequentemente provedor, e só. Nunca fora carinhoso (Com raras
exceções), sempre foi ausente, passava a maior parte do tempo viajando,
completamente infiel, a mãe do irmão chegou a relatar que a quantidade de
mulheres com que este pai se envolvia certamente trouxe uma grande confusão a
cabeça daquele filho primogênito, uma total perda de referência materna. Essa
mesma mãe disse que nunca sofreu agressão física, embora diversas brigas ocorreram por
conta das inúmeras traições. Isso era o que mais a incomodava,
isso a fez sofrer demais, as inúmeras e incontáveis traições, o ápice foi quando
este pai - ainda na relação com esta mãe que estava grávida do caçula, o
segundo filho do pai – decidiu abrir uma loja em homenagem a uma ex namorada
colocando o nome da mesma no nome desta loja, foi o cúmulo da humilhação e da
dor para essa mãe.
Que pai
é esse que tomou o filho da mãe e nunca a deixou saber para onde o levou? Que
pai é este que usava do expediente da violência física para aprisionar os
sonhos de alguém que ele dizia amar? A mãe disse ao filho que o pai era o seu
melhor amigo desde a infância, e que quando jovens bêbados em uma festa se
beijaram daí a amizade passou para outro estágio. Foram diversas brigas, muitas
delas com agressões físicas, é verdade que a mãe admitiu ter o temperamento tão
forte e genioso quanto o pai, não nos esqueçamos que essa mãe nasceu e cresceu
ouvindo de sua mãe palavras encorajadoras como “sua rapariga, puta, prostituta”.
Que a mãe (avó) da mãe chegou a cortar algumas vezes o cabelo desta mãe (filha)
com faca como naqueles filmes e séries primitivas, aliás, chegou a ser pior se
considerarmos que naquela época não se tinha tesoura e a faca bem amolada era
utilizada também para este fim, enquanto nas décadas de 60 e 70 do século
passado tal prática era meramente uma maldade, perversão que chamavam de
punição ou disciplina. “Mamãe primeiro batia, espancava com cinta de aço, cipó
e só depois falava alguma coisa, aliás gritava. Papai primeiro conversava em um
tom que pudéssemos ouvir e entender e quando batia era no máximo umas palmadas.
Papai era diálogo, mamãe era porrada”, essas foram as palavras da mãe do
primogênito relatando parte de sua infância. Como cobrar amor de uma mãe que
sempre recebeu violência seja verbal, física ou emocional de sua mãe? A relação
dela (mãe) era melhor com o seu pai (avô paterno), por razões óbvias. Em ambos
os casos, seja o do primogênito ou da mãe deviam ser bem tratados, acolhidos,
respeitados, protegidos e amados tanto pela mãe quanto pelo pai. Filho nenhum
merece passar por isso, aliás, nenhuma pessoa merece.
O pai
do primogênito era o caçula de 10 filhos, sendo 5 homens e 5 mulheres. Avô, pai
e filho com o mesmo nome e sobrenome. O pai do primogênito foi o único que não
nasceu na mesma cidade e estado entre os 10 irmãos, foi o único a estudar em
escola privada, embora seja o com o pior currículo acadêmico, e tenha sido um
exímio comerciante no final da década de 80 e início dos anos 90 do século
passado. Este pai foi o único a ter bicicleta, até onde consta não teve uma
vida tão dura e tão cheia de dores na infância quanto a melhor amiga de
infância e adolescência, e futura companheira mãe do primogênito, e nem mesmo
passou pelo que o filho primogênito passou. É verdade que é muito difícil dar o
que não se recebeu, mas fica a pergunta como pode um pai ter sido tão cruel se
parece não ter sofrido ou recebido crueldade quando garoto? Há algo que não se
fecha nessa história, este pai já não está mais entre nós, os seus pais também
não. O seu irmão mais próximo e melhor amigo que poderia falar a respeito
também já encarnou todos em um período de 10 anos entre 1992 e 2002, talvez as
tias, irmãs deste pai pudesse relatar algo sobre a infância dele já que ele era
o caçula, mas esse é um campo ora delicado, ora hostil e difícil de ser
consultado, ainda mais com senhoras entre os 70 e 80 anos em dias cruéis de uma
pandemia histórica, nem todo mundo consegue lidar com o passado, nem todo mundo
quer enfrentar seus demônios e é mais cômodo não tocar em certos assuntos.
Este
pai que devia proteger, cuidar, respeitar e amar, fora o pai que traia a mãe,
que agredia a mãe, que foi embora para longe sem dizer a essa mãe onde e com
quem deixara esse filho, que impediu de várias formas que essa mãe tivesse
contato com este filho, que convenceu essa mãe a ir morar com ele nesta outra
cidade distante em uma pensão e que continuou traindo e agredindo, e não
achando pouco em certo momento junto tudo e partiu sem dizer para onde ia. Essa
mãe ficou em uma metrópole onde não conhecia outra pessoa além do pai,
totalmente sozinha e abandonada sem emprego. Este pai não era apenas um pai
cruel, era um homem cruel. A mãe começou a fazer faxinas, algum tempo depois
conseguiu um emprego como secretária, encontrou um novo amor com quem se casou,
passou alguns anos até se divorciar e regressar a sua cidade. Durante meses
tentou ver o filho onde passara na frente da casa da tia que o criara, mas
nunca teve coragem de bater no portão, tocar a campainha pois tinha medo, medo
de que este pai cruel e violento pudesse voltar e tentar algo contra a vida
dela. Sim, o filho ouviu este relato de sua mãe. Sua mãe relatou tudo isso sem
qualquer raiva ou amargura deste pai, havia no olhar dela apenas a tristeza de
ter sido separada de seu filho, mesmo ela admitindo que também foi negligente.
Fato é
que o filho fora educado por sua tia paterna e suas primas dos 5 meses aos 5 anos de
vida quando fora levado por seu pai com quem morou até a morte deste. Lá se viu
devoto do futebol, sua grande e maior alegria, a bola e o campo eram sua paz,
sua ternura, seu momento de consolo, de graça e libertação, por isso sempre
digo que nunca se trata apenas de futebol quando assistimos a um jogo. Só uma
criança sabe o valor de uma bola e de um campo de futebol. Essa criança que
quase não nasceu porque o pai havia espancado sua mãe, agora morava com este
pai ausente, que deixou como memória o bombom de jiló. Sim, este pai deu um
sonho de valsa com recheio de jiló a uma criança de 5 anos de idade, fez pouco
caso e tirou onda com a cara da criança.
Entre
os 5 e 6 anos este pai deu uma surra de cipó de boi nesta criança porque ela
atirou uma pedra no olho de um amiguinho. A atitude da criança não foi legal,
ela reagiu a alguma agressão sofrida pelo coleguinha, fato é que crianças não
deviam agredir umas às outras, mas se elas estão aprendendo cabe a nós adultos
ajudá-las com isso, mas aquele pai não teve misericórdia a punição foi uma
surra de cipó de boi que deixou a criança toda marcada e certamente
traumatizada com muita raiva internalizada. Naquele mesmo ano 1989 a cozinha
desabou de madrugada, a criança parecia sempre estar assustada com alguma coisa,
outro dia a companheira deste pai teve uma convulsão e os crentes entraram na
casa para expelir demônios dela, a criança ficará assustada tanto com a
boadrasta convulsionando como com a quantidade de religiosos fervorosos
expulsando algo que nunca iria sair por não estar ali, talvez estivesse no pai que
estava viajando a trabalho, talvez os crentes deviam voltar noutra ocasião. A
mulher deste pai vendia batons, e o filho inquieto e curioso mexia nos batons e
comia alguns, tinham sabores de morango, chocolate, etc. Na verdade não era
sabor e sim a cor, mas era uma criança com 5 ou 6 anos, ela mal sabia discernir
isso. Fato é que o pai o jurou, se o pegasse comendo novamente o faria comer
uma barra de sabão. Dito e feito, a criança mexeu nos batons, tentou ajeitar
com mão, mas a boadrasta percebeu e foi falar com ele educadamente, o pai viu e
de imediato pegou a criança pelos cabelos o arrastou para fora de casa até o
quintal e enfiou uma barra de sabão na boca da criança, achando pouco pegou uma
cinta de aço e bateu na criança duas ou três vezes o deixando marcado e sem
forças para andar. Ainda nesta casa o filho se recorda de ver o Brasil
eliminado pela Argentina na Copa de 90 com aquela jogada arrebatadora de
Maradona que tocou para Claudio Caniggia fazer o gol. O filho chorava no colo
do pai que amorosamente o consolava enquanto também chorava, este é um dos dois
únicos relatos de carinho deste pai com este filho.
Essa
“família” se mudara para outra casa no mesmo bairro, onde passaram pouco tempo
até se mudar para a terceira casa essa assim com a primeira também construída
por este pai. Até então o filho tinha poucas memórias das agressões do pai a
sua companheira, mas algumas já haviam acontecido. O filho certa vez chutou uma
bola de fora para dentro da casa e acertou em cheio aquelas louças que ficavam
penduradas na parede, certamente apanhou, mas de duas uma, ou o pai pegou leve
ou foi algo tão pesado que criança agora já com 7 anos não se recorda quando
adulto. Sim foi nesta casa que o cunhado de seu pai, o irmão da companheira de
seu pai fora passar férias, e por pelo menos duas vezes abusou sexualmente
daquela criança o forçando a fazer sexo oral e anal. Essa é uma parte triste,
dolorosa, extremamente cruel. Aquele rapaz disse a criança: “Se você contar
algo para alguém eu mato seu pai”. O pai daquela criança para aquela criança
naquele momento da vida era seu porto seguro, era seu protetor, era em quem ele
confiava, mesmo que sentindo também medo daquele pai, é óbvio que ele não tinha
plena consciência disso, ele era só uma criança que queria atenção, o carinho, a proteção, a compreensão, o acolhimento e o amor de seu pai, aquela criança amava jogar futebol, amava futebol.
Durante anos aquela criança pensou que aquilo que sofrera do abusador fora uma
forma que a vida encontrou de punir seu pai, o filho estava pagando pelo fato
de seu pai bater e abusar da companheira cujo o irmão abusador fora passar
férias na sua casa. É viva a memória na cabeça daquela criança de ficar
agarrada com seu pai desde a sexta até o domingo o dia que o abusador fora
embora, a criança se lembra do abusador olhando para ela e fazendo um gesto de
que se contasse algo o pai morreria. Essa história só veio à tona após a
criança se tornar homem e completar 30 anos. Mas é tudo que se tem memória dela
e tudo o que se consegue falar a respeito. Que relação este pai tinha com este
filho que ele nunca pode falar sobre isso com esse pai? A criança tinha medo,
mas também vergonha, sentia culpa e certamente o pavor de ao contar para o pai,
por um lado que ele fosse (o pai) assassinado pelo abusador - quando na verdade pelas características violentas fosse mais provável que este pai matasse o abusador -, e por outro que (a
criança) apanhasse do pai por não acreditar nele. Ainda nesta casa e neste tempo
o pai tinha um açougue e certa feita levou o filho a um matadouro, parece
inacreditável, mas é a realidade. Essa criança viu o pai matar um porco enorme
a pauladas e depois a facadas para fazer linguiça e outras peças pare este
açougue, galinhas mortas na frente da criança se perdeu a conta. Sim, uma
criança de 7 anos.
A
penúltima casa é onde aconteceu o episódio do pai espancar a mulher e pedir
orientação ao filho. Lá eles tinham Paquita uma cachorra vira lata com quem a
criança aperfeiçoava suas técnicas de futebol, foi lá onde seu primo jogador
profissional que chegaria ao Vasco da Gama dera de presente a criança um time
de botão do Flamengo que fora rejeitado pela criança que dizia “aqui é
Corinthians”. Era nessa casa que o pai chegava na sexta de viagem e longo ia
para o bar beber até o domingo praticamente. O bar onde o pai fora assassinado
ficara na rua dessa casa, e pertencia a um cara chamado Claudinho, a criança
não recorda o nome do bar, sempre disse que o nome era Paraíso, mas Paraíso na
verdade fora o nome do primeiro bar que seu pai teve com sua mãe antes mesmo
dele (filho) nascer. Foi nessa casa que o filho presenciou outra cena
assustadora, a primeira tentativa de homicídio contra seu pai. Um homem que não
se sabe se fora o mesmo que assassinou seu pai um ano depois, invadira o
terreno da casa e do lado de fora dizia estar armado e que foi ali para matar
seu pai. A criança apavorada correu para debaixo da cama do outro quarto,
enquanto seu pai apagava todas as luzes internas da casa e acendia todas as
luzes de fora, enrolou um pano na mão e dizia estar armado do lado de dentro, a
pessoa que estava fora ameaçando a família apenas quebrou as luzes traseiras do
carro do pai e fugiu. Outra feita um homem que não se sabe se o mesmo dessa
primeira tentativa e se também era o mesmo que o assassinou, correra atrás do
pai com uma faca na mão, mas sem sucesso na tentativa, ambos (ou a mesma pessoa) disseram que iriam
matar aquele pai, fracassaram ou fracassou naquelas duas tentativas, mas o
sinal estava claro e o tempo parecia com dias contados. Foi nessa casa que a
criança aprendeu a andar de ônibus sozinha e ir de um bairro distante a outro
para sua escola. Certa feita não acertou qual ônibus pegar e voltou para casa,
onde levou muitos gritos de seu pai por não acertar o ônibus e perder a aula. Qual
pai deixa uma criança de 7 anos sozinha em uma parada de ônibus para ir de um
bairro a outro? Foi nessa escola Dayse Fanstone que a criança teve seu
“primeiro amor”, ela se chamava Ana Paula e era loirinha dos cabelos cacheados
e olhos verdes. Ana foi seu primeiro amor. Ali perto daquela escola tinha um
hospital psiquiátrico. A criança viu pelo menos duas vezes tentativas de
suicídio. Um homem se atirou lá de cima, não se sabe se morreu, e outra vez uma
mulher apareceu completamente pelada neste teto e se atirou, mas desta vez já
tinha algo embaixo para amenizar a queda.
A
última casa, o último ano de vida, os últimos atos de crueldade.
Aquela
casa talvez fosse a maior que já moraram, o terreno com certeza era. Ela ficava
mais distante embora ficasse no mesmo bairro das outras. Lá se tinha
hortaliças, frutas, e outras plantações. O sonho da criança era ver tomates e
melancia nascerem, demorou, mas nasceram. Lá tinha mais espaço para criança e Paquita
jogarem futebol. Certa feita este pai levou a criança a um bordel, ou cabaré. A
criança sabia porque o pai entrou em um lugar onde ela não podia ir, enquanto a
criança brincava só com mulheres que estavam com pouquíssimas roupas, a criança
brincava brincadeiras de criança e não de adultos, as moças que ali estavam
eram gentis e sem maldades com a criança, a presença daquela criança parecia um
alento aquelas mulheres. Foi na escola citada que a criança ao reagir uma
brincadeira de um dos coleguinhas acertou uma pedra na vidraça e recebeu
suspensão. Ao chegar em casa disse que a irmã da diretora havia morrido e por
isso não haveria aula no outro dia, no dia seguinte era feriado, mas a
suspensão era de três dias, então não sabendo mais o que dizer a criança apenas
colocou o papel da suspensão sobre a mesa. Aquele pai quando leu saiu, demorou
algum tempo e chegou com uma bola nova. A criança ficou super animada, mas mal
sabia ela o que a aguardava. O pai olhou para a criança e disse: “está vendo
essa bola nova aqui? É para Paquita, toma Paquita!” Quando Paquita furou a bola
este pai a cortou em dois gomos, pegou um e colocou sobre a cabeça da criança e
disse: “Pronto agora você é o bobo. ” Saiu, foi no quintal ao lado e voltou com
uma vara de macaxeira, a criança tentou correr e conseguiu fugir duas vezes,
até que seu pai a pegou pelos cabelos e arrastou para um lugar no terraço e
bateu sem dó, sem piedade, sem misericórdia, a criança chorava de dor, gemia de
dor, se urinava, pedia para parar, seu tio que estava na casa na época pediu
para que aquele pai parasse, o tio sofria com aquilo também, ele era gentil,
manso, mas o pai o disse: “Se você se meter apanha também”, a mulher deste pai
em todas essas ocasiões certamente tentava interceder pela criança, mas corria
grande risco de apanhar também coitada, o que ela poderia fazer? Fato é que a
criança toda machucada não tinha forças sequer para se levantar, toda mijada e
humilhada ficou ali por muito tempo. Em todos estes episódios este pai tentava
“explicar”, na verdade justificar o que fez. Outro dia ouvi de um psiquiatra
que o adulto que bate na criança na verdade está buscando uma forma de aliviar
o seu sofrimento, mesmo que se sinta culpada depois. Em todos os casos, aquele
pai nunca demonstrou arrependimento, nunca teve um pedido de desculpas, pelo
contrário, teve mais lição de moral. “Apanhou porque errou, por ter feito algo
errado. Se andar na linha, fizer o que é certo não apanha”, era o que ele dizia
aquela criança. Lembra que eu havia falado que só duas memórias boas deste pai
essa criança tinha? A primeira foi na eliminação da seleção na Copa do Mundo de
1990, dessa vez foi melhor, o carinho veio com vitória e vitória do
Corinthians. Corinthians 2 x 0 Bahia na Fonte Nova no dia 06 de abril de 1992.
Daí a razão pela qual a criança era apaixonada por futebol, pela seleção, mas
ainda mais pelo Corinthians. É triste gente que uma criança em toda sua
infância só tenha duas memórias alegres com seu pai. A criança se jogava sobre
o pai que a jogava para cima e a segurava com proteção, cuidado e carinho,
essas duas lembranças, memórias e recordações são as únicas que essa criança
tem de momentos de afagos com este pai. Foi nessa mesma casa que essa criança
presenciou por diversas vezes violência sexual da parte do pai para sua
companheira, ele ainda se lembra dos gritos dela dizendo para o pai parar, que
não queria, que estava a machucando, e que entre tapas e socos aquele pai ia
violentando sexualmente aquela mulher. Naquele ano o Flamengo foi campeão
brasileiro e Daniela Perez foi brutalmente assassinada em dezembro por
Guilherme de Pádua. Era uma sexta-feira fim de tarde e início de noite quando
saíram pai, companheira, o tio e o filho a outro bairro, iam confraternizar na
casa de uma tia. O filho ainda alertou o pai: “tem um carro todo preto parado
na frente da nossa casa”. O pai respondeu: “não é nada”. Por volta das 22h
voltando para casa o pai disse que queria tomar uma saideira, a maldita
saideira que a criança detestava. Foram ao bar do Claudinho um cara que jogava
no Brilhante time amador e campeão naquele ano, presidido pelo pai da criança. A
criança ficou no carro dormindo quando acordou com o primeiro disparo, veio o
segundo e a criança correu para o bar, então o terceiro, todos certeiros e
mortais na linha do coração e pelas costas, aquele pai se virou, levou o 4 e
último tiro no peito e olhando para a criança caminhou em sua direção, tombou
nos seus pés, tentou dizer algumas palavras que a criança jamais se recordou. A
mãe de seu irmão o recordou recentemente que a criança viu o atirador e
assassino foi até ele e disse para ele não matar o seu pai, a criança se
recorda do assassino correr, a criança foi a casa de um conhecido que o colocou
em sua moto e foram até o bairro que sua tia morava, no trajeto a criança
lembra de olhar nos olhos do assassinado que corria em direção a saída do
bairro. O nome dele é Luís Carlos, natural do Pará com 55 mortes nas costas,
profissão? Pistoleiro. Esse homem já havia almoçado na casa deste pai, essa é a
memória que essa criança tem, mas sobre essa morte há pelo menos quatro
versões: Um sócio da fábrica de sandálias que mandou matar por causa de
dinheiro, mas não se sabe quem devia a quem; outra ligada a questões políticas
e joias; outra que ele teria se envolvido com uma mulher casada de alguém
poderoso; e por fim algo sobre o pagamento do título do Brilhante futebol clube,
dizem que o tal de Claudinho ficou com grande parte da premiação e não
distribuiu com os demais atletas. Fato é que a criança cresceu e pouco se
importa hoje com o motivo, ela se importa mesmo é com a culpa que carregou
durante anos, com os traumas que ficaram por conta deste pai cruel que ela
carregou como herói, com toda a repressão e violência sofrida que foi
silenciada por décadas, e só agora após quase 30 anos, através de terapia,
amigos, e perdas de extrema importância essas histórias são reviradas ponta a
cabeça com ajuda da tia que o criou, da outra tia que morava na mesma cidade
que o pai, com a mãe de seu irmão e com sua mãe. Parece que Caetano estava
certo quando cantou que “todo homem precisa de uma mãe”.
Teria
muita mais a contar sobre essa criança, suas dores e seus traumas, nesse mesmo
ano de 1992 viu um cara voar com a moto e morrer na hora nessa mesma cidade
onde seu pai morreu, viu seu tio bater em seus dois primos enquanto colocava os
dois para brigar, viu sua prima se cortar enquanto brincavam e ela ter que
levar diversos pontos no braço... Outras coisas ruins aconteceram aquela
criança como ouvir de uma tia que ele tinha “olhos brancos de assassino” e isso
depois de todos os fatos narrados e a tia tendo conhecimento de tudo, mas fato
é que toda e qualquer coisa que tenha ocorrido na vida daquela criança com 8
anos 11 meses e 8 dias de vida quando perdeu o seu pai como perdeu, não podem
ser comparadas com o que ele viveu desde o ventre de sua mãe até ali.
37
anos 5 meses e 3 dias
O que
há em comum entre o dia 6 de maio de 1955 e 01 de novembro de 1983 com 09 de
outubro de 1992 e 04 de abril de 2021?
Aquele pai não era um pai, não era herói, era um vilão, era um monstro, um ser cruel, que com raras exceções demonstrava afeto. Aquela criança cresceu com muita raiva e agressividade reprimida, sem ter consciência disso e de como tratar, neste percurso gritou, xingou, magoou e machucou pessoas, afastou e perdeu algumas delas, mas atentou que algo não estava bem, que algo precisava ser feito, que uma mudança era necessária, porque diferente daquele pai, a criança cresceu e quer ser feliz consigo e com os outros. A primeira coisa que é clara para este adulto é que ele não é o pai dele. Que ele amou muito mais que agrediu, que os momentos de afeto não eram exceções. Que sempre teve reflexão, tristeza, dor e lágrima após cada grito e explosão. Que havia dentro daquele adulto uma criança ferida que sentia a carência e ausência de uma mãe que foi negligente, mas que também se sentiu ameaçada e impedida de ter um contato maior com seu filho, que havia uma criança que durante anos idealizou um pai que nunca existiu na realidade, que levou consigo culpas que nunca teve, como a morte do pai, como o abuso sexual sofrido, entre outros, mas que através da fala e da escrita descobriu o processo de cura, de libertação, de redenção. Como disse certa vez a psicanalista deste adulto ao citar Hannah Arendt: “Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história” Ela sobreviveu ao Holocausto, e queria entender como alguém podia ser capaz de atos tão monstruosos. Criou um conceito que se tornaria profundamente influente: a "banalidade do mal". Quem fala se liberta, quem lê e escreve também, mas nada, nem ninguém ensinou tanto sobre amor a este adulto que cresceu como a criança como quem conviveu no último ano...
João Vicente Ferreira Neto
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