Evangelho e cidadania - Parte 02
É de bom alvitre que se leia neste ponto de nossa reflexão o capítulo 22 de Mateus, dos versículos 15 ao 22.
“Então, retirando-se os fariseus, consultaram entre si como o surpreenderiam em alguma palavra. E enviaram-lhe os discípulos, juntamente com os herodianos, para dizer-lhe: Mestre, sabemos que és verdadeiro e que ensinas o caminho de Deus, de acordo com a verdade, sem te importares com quem quer que seja, porque não lhas a aparência dos homens. Dize-nos, pois: que te parece? É lícito pagar tributo a César ou não? Jesus, porém, conhecendo-lhes a malícia, respondeu: Por que me experimentais, hipócritas? Mostrai-me a moeda do tributo. Trouxeram-lhe um denário. E ele lhes perguntou: De quem é esta efígie e inscrição? Responderam: De César. Então, lhes disse: Daí, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Ouvindo isto, se admiraram e, deixando-o, foram-se.”
Neste texto de Mateus, Jesus já está em Jerusalém e de lá só sairá pela chamada Via Dolorosa. A multidão o aclama e o clima está se tornando insuportável. Depois de insistir em falar de assuntos inquietantes, há uma conspiração que tenta surpreender-lhe. Os fariseus se retiraram, a fim de planejar o modo pelo qual poderiam apanhar Jesus na armadilha de alguma palavra. Decidiram enviar alguns de seus discípulos, com os herodianos, a fim de propor-lhe uma questão controvertida a respeito de pagamento de impostos ao imperador romano. Nada sabemos a respeito dos herodianos, senão o que está registrado aqui. Supõe-se que seriam defensores judeus de Herodes Antipas, que apoiavam o colaboracionismo aos conquistadores romanos.
“Começam com lisonjas. Mestre, bem sabemos que és verdadeiro e que ensinas o caminho de Deus com toda sinceridade. Tu não te preocupas com o que pensam as pessoas, porque não te interessas por ganhar-lhes o favor. Então diga-nos, é lícito pagar tributo a César, ou não? Fica claro como cristal o dilema que propõem a Jesus. Se ele se opusesse ao pagamento de impostos, estaria em dificuldades com as autoridades civis. Os herodianos o acusariam de tentar incitar uma rebelião. Se aprovasse o pagamento dos impostos, perderia popularidade. Parecia que não havia meio de ele responder à pergunta sem sair perdendo.
O imposto a que se referiam era uma taxa per capita obrigatória a cada cidadão a partir da puberdade até os sessenta e cinco anos. Devia ser pago em moeda romana ao tesouro imperial. O povo judeu se ressentia do pagamento de tal imposto, porque lembrava a todos que eram vassalos de uma potência estrangeira que lhes confiscara a terra e, agora, lhes extorquia uma soma de dinheiro que engordaria os cofres do imperador.”
O texto é da maior importância porque ele nos arremete aos posicionamentos de Jesus Cristo sobre a difícil questão da cidadania. Sua resposta fornece princípios sobre como a igreja se comporta quando confrontada com o dilema ideológico. Aqui precisamos abrir um parêntese para esclarecermos o que entendemos por ideologia.
Ideologia seria a lente que nos capacita a ler nossa realidade, a natureza de nossas estruturas e quais as possibilidades escatológicas.
A escolha do texto, a observação de como Cristo reagiu não é por acaso. Pois o comportamento do cristianismo através dos séculos não foi sem tensões, ambigüidades. Como agir, reagir, comportar-se como cidadãos de dois reinos? Até que ponto é permitida a desobediência civil, a revolta armada, o exílio?
Ainda na embrionária igreja primitiva esse dilema se apresenta diante de Pedro e João. Acusados de causar incômodo religioso na monolítica Jerusalém judaica, Pedro reagiu diante do mesmo Sinédrio que conduziu a condenação de Cristo afirmando em Atos 4.19:
“Julgai se é justo diante de Deus ouvir-vos antes a vós outros do que a Deus.”
Pouco tempo depois insistiu em Atos 5.29:
“Antes, importa obedecer a Deus do que aos homens.”
Entretanto, Paulo, quase que contradizendo a postura de Pedro ensina em Romanos 13.1-7:
“Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação. Porque os magistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal. Quere tu não temer a autoridade? Faze o bem e terás louvor dela, visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal. É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição, mas também por dever de consciência. Por esse motivo, também pagais tributos, porque são ministros de Deus, atendendo, constantemente, a este serviço. Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra.”
Assim, por toda a história, o comportamento dos cristãos em regimes totalitários, sociedades eticamente adoecidas e em culturas perversas não foi sempre homogêneo. Algumas vezes pareceu coerente:
Quando a perseguição e martírio dos cristãos era comum no mundo antigo, foi necessário optar não pela resistência aos regimes, mas ao exílio. Por isso, foram construídas as catacumbas.
Já nos tempos dos gladiadores, Roma já encontrava-se encharcada pelo cristianismo. Foi a militância dos cristãos que estancou o sangue que jorrava no Coliseu.
Em algumas circunstâncias, os regimes valeram-se dos cristãos para legitimar suas ambições de conquistas, seus sistemas de dominação e suas guerras sangrentas.
Diz-se que Isabel, a católica cometeu mais atrocidades em nome de sua fé do que Nero jamais por causa de sua perversão.
Hoje, sabe-se que grande parte do poder religioso calou-se quando Hitler dizimava os judeus, os ciganos, os homossexuais e os deficientes físicos. Quando não houve conivência, houve um silêncio cômodo.
Salazar, em Portugal, Franco na Espanha, e os regimes totalitários da América Latina contavam com o apoio da Cúria.
No Brasil, o regime ditatorial mais longo de nossa história, o que começou em 1964, na verdade não teria vingado se fosse a Marcha por Deus e pela Família, liderada pela igreja católica. Os evangélicos calaram-se pelas três décadas. Crente que fosse verdadeiramente, votava na Arena. Os militares contaram com a obediência serena e meiga dos evangélicos. Enquanto atrocidades eram cometidas nos porões do Doi Codi e nos porões da repressão, alheios, continuávamos conduzindo reuniões evangelísticas. Acreditamos que os comunistas eram perigo tão grande, que deveríamos no unir aos militares por que eles derrotariam as forças do mal.
Em Ruanda, hoje sabe-se a política de extermínio na questão étnicas entre os Tutsis e os Hutus teve o aval da igreja cristã local.
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