A chama não tem pavio
A chama não tem pavio
Mais do que oferecer respostas às perguntas, Jesus respondia aos corações. Ele sabia que por trás de um cego de nascença estava a angústia a respeito das eventuais maldições divinas; nas entrelinhas da pergunta a respeito do divórcio, a sugestão de que tanto o legalismo quanto a licenciosidade são igualmente destrutivos; na possibilidade do apredrejamento da mulher flagrada em adultério, o ocultamento de uma injustiça que transcende as relações sociais. Jesus não era ingênuo, não enxergava a realidade ao seu redor de maneira superficial, e não ficava preso aos fatos. Seu olhar e sua escuta alcançavam a alma humana que não se revela ao observador desatento. Sua ação, reação e proposição desciam aos meandros sombrios das articulações sociais, religiosas, políticas e econômicas de seu mundo, desmascaravam as artimanhas dos podres poderes, arrebentavam as correntes das diferentes escravidões, e instalavam bombas de tempo na estruturas de promoção e manutenção da morte. É urgente aprender com Jesus a ler as gentes e os tempos.
Quem observa de longe as manifestações dos últimos dias que encheram as ruas de nossas capitais com palavras de ordem e protestos, acredita que o povo reivindica apenas R$0,20 a menos na passagem do ônibus e melhorias no transporte urbano. Os mal intencionados se apressam em criticar os arruaceiros e baderneiros, e propositada ou inconscientemente, desviam a atenção para um debate absolutamente periférico – como é o caso de discutir a atuação da PM, em detrimento do aprofundamento do debate a respeito do que levou as multidões às ruas. Não faltam manifestantes orgânicos, protestantes de fim tarde, que confundem engajamento e militância com programa legal com gente antenada numa esquina descolada, o que, de fato, dá motivos para quem quer desmerecer o movimento como coisa de gente alienada. Mas os que se deixam levar por esses tipos de comentários já foram julgados e condenados. A respeito deles já foi dito que “sua piscina está cheia de ratos e suas ideias não correspondem aos fatos”.
A verdade verdadeira é que a rua foi invadida não apenas por milhares de pessoas, mas por múltiplas ideias, que, somadas, ou melhor, multiplicadas, declaram em alto e bom som que o Brasil está amanhecendo para outro salto quântico em sua democracia e respectivas dimensões políticas, sociais e econômicas. Ainda é cedo para dizer se o que está acontecendo é realmente algo de primeira grandeza, como a campanha pelas Diretas Já, em 1984, e o movimento dos Caras Pintadas, em 1992. Mas é fato que mais uma vez o povo está na rua. Quando isso acontece nas proporções em que estamos assistindo, mais do que a quantidade de manifestantes ou as reivindicações objetivas, o que importa mesmo é constatar o fato de que o espírito democrático se adensa e o povo dá um tapa na mesa. A partir de então começam a aparecer novas e mais profundas propostas, são deflagrados processos de mudanças, projetos são tirados da gaveta (reformas tributária e política, quem sabe?), as leis são aperfeiçoadas, as instituições democráticas fortalecidas, a sociedade civil aprende a se organizar, os ocupantes do poder colocam as barbas de molho temendo os desdobramentos nas eleições seguintes, surgem novos atores sociais, nascem novos coletivos, são adensados e ganham fôlego os velhos movimentos, e com a chegada de novos engajados, são depurados e oxigenados os grupos que têm marchado com suas bandeiras desde sempre.
Participar de uma manifestação de rua faz nascer e crescer no peito uma paixão pelo protagonismo no estabelecimento dos rumos da sociedade, expõe os caminhantes às conversas, gritos de guerra, argumentos mais elaborados e informações mais precisas a respeito dos temas em pauta, e trazem a boa experiência de mobilização popular: repetir uma palavra de ordem para transmiti-la como uma onda que vai se espalhando até chegar às bordas da multidão; ocupar o espaço público sem violência e em busca da simpatia dos circunstantes; identificar os inimigos internos – infiltrados das forças antagônicas ao movimento ou meramente os espíritos de porco oportunistas; olhar nos olhos das forças de repressão, perder o medo dos cassetetes, e adquirir as habilidades dos que têm o velho e bom hábito de ficar “calmos em meio a tantos gases lacrimogêneos”.
Caso você esteja se aborrecendo com as interrupções do seu trajeto com barricadas, fogo e multidões, e com o barulho em volta da sua casa, vai se acostumando, “o rio de asfalto e gente” que “entorna pelas ladeiras e entope o meio fio” vai continuar fazendo curvas e canções, pois aqueles que nos fizeram homens, também se chamavam homens, e “porque se chamavam homens, também se chamavam sonhos e os sonhos não envelhecem”.
Por Ed René Kivitz
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