Entrevista com MARCELO FREIXO - Parte II

A mídia ajuda a manter essa situação?

Claro! Ela consolida valores. É instrumento fundamental para uma sociedade como a nossa, com uma ordem tão violenta e desigual. E aí é a ordem que é violenta, não é o que atinge a ordem, entende? É como fala Brecht: “Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violenta às margens que o comprimem”. Essa ordem é tirânica. É só olhar para as condições de vida da população pobre.

Na ditadura, a produção de inimigos tinha a ver com uma lógica política. Era aquele que pensava diferente, era a ameaça ideológica ao regime. É só pegar o texto do AI-5 e ler. Mas isso mudou e o novo inimigo público é aquele que sobrou de uma sociedade de mercado. É aquele que está desorganizado, desassistido. É identificado pela cor de pele e pelo local de moradia. Se o cara é negro e foi morto pela polícia, não precisa de investigação, né? Ele já é considerado bandido.

Normalmente, para o poder judiciário permitir que a polícia entre na sua casa, tem que ter uma especificidade, é preciso ter um motivo que garanta que não existem outros caminhos, é algo muito singular. E o que tem acontecido no Rio de Janeiro? O poder judiciário emite o mandato de busca genérico, isto é, determina que a polícia pode entrar em qualquer casa de certas áreas. Que áreas? Só as favelas. É o judiciário absorvendo na sua prática o processo de criminalização da pobreza. Além de identificar quem faz parte da sociedade e quem não faz, esse processo é acompanhado por políticas públicas pensadas e efetivadas.

O Caveirão é um exemplo?

É sim. Como imaginar um país que diz viver um Estado Democrático de Direito, existir um carro blindado que é de policiamento ostensivo? Ele não é para casos de exceção. O Caveirão não tem lugar para botar preso, não tem a chamada “caçamba”. O Caveirão é feito para matar! É um carro com um alto-falante, usado como instrumento de pânico, de terror. É o medo vindo das mãos de quem deveria garantir a segurança ao conjunto da população. É a inversão completa do papel da polícia. Ele é utilizado para uma política de guerra.

Hoje, a essência da luta de classe passa pela questão dos direitos humanos. Falam que estamos em guerra e na guerra tudo vale. Para haver guerra, é necessário um território. No território do inimigo não existe parâmetro legal. E que território é esse? É a favela. É aí que eu digo que a imprensa tem papel fundamental, porque noticia a “guerra do Rio”. E quando se absorve de forma inquestionável que estamos em guerra, você naturaliza e aceita uma série de coisas que a guerra traz, inclusive a morte. E de preferência a morte de quem não é igual a você. Esse também é o discurso do Bope.

O que você achou do filme Tropa de Elite? Qual é a influência dele nesse tema?

O [José] Padilha é um amigo de muitos anos, gosto muito dele. É o mesmo diretor que fez o filme “Ônibus 174”, um documentário extraordinário que contribuiu muito na luta pelos direitos humanos. Quase ninguém viu! E qual o problema do Tropa de Elite? Quando o Padilha fez “Ônibus 174”, ele fez uma opção política. Ele contou a história do Sandro, mas poderia ter contado a história do policial que atirou na Geísa, podia ter contado a história da Geísa.

Quando ele vai fazer Tropa de Elite e escolhe falar de segurança pública no olhar do policial do Bope, ele também faz uma escolha política. Uma escolha política de classe. Por quê? Porque o olhar do policial do Bope não é o olhar do policial apenas. É o olhar de um dos principais instrumentos de classe para manutenção da ordem e de violência contra um determinado setor da sociedade.

O olhar do policial do Bope não é um olhar individual! Não é o olhar de uma pessoa apenas, por mais que ele tente mostrar o personagem em crise com a família. É importante a sociedade conhecer esse olhar? Claro! O problema é quando esse olhar é apresentado dessa forma para uma sociedade como a nossa, né? É uma sociedade que não tem acesso aos meios de comunicação democratizados. O bom debate não é feito, não de forma democrática.

Por exemplo, esse filme está sendo visto por muitos no exterior como uma denúncia contra a polícia brasileira. É essa a leitura feita pela maioria no Brasil? Não! Você tem que saber com quem está falando, para ter dimensão do resultado da conversa que sua obra vai provocar. O resultado da obra de arte depende também para quem você faz, em que momento faz. Em um momento que a sociedade brasileira vive o medo, vive também a intolerância.

Nesse sentido, o filme ajuda a cristalizar determinadas concepções de segurança, ajuda na consolidação da criminalização da pobreza. O filme traz a idéia de que tem duas polícias: uma corrupta e outra que é violenta, mas que resolve. O que não é verdade, pois opõe tortura e corrupção. Na história do Brasil, tortura e corrupção sempre andaram de mãos dadas, desde a escravidão.

O filme traz um grande prejuízo pedagógico na luta por uma visão de segurança pública que deve ser inclusiva, baseada na construção da cultura de direitos. Não baseada na eliminação, no enfrentamento. Legitima-se o fato da gente ter a polícia que mais mata no mundo. De janeiro a outubro, a polícia do Rio de Janeiro matou 1.072 pessoas com título de auto de resistência [resistência à prisão]. Também temos um número de policiais mortos assustador. Mas não em serviço.

No confronto, a proporção é de um policial morto para cada 30 civis, o que descaracteriza a idéia de guerra, né? Mas o número de policiais mortos fora do horário de serviço é também um dos maiores do mundo. Quem ganha com isso? Essa política trouxe a redução da criminalidade? Tem construído uma sociedade mais segura? Não! Além de ser uma política desumana e que serve a apenas uma classe, é ineficaz.

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